A convite do Coletivo de Mulheres Marília, eu, Bruna Oliveira, pesquisadora de iniciação científica do Laboratório de estudos de gênero, tive a oportunidade de escrever uma coluna para o jornal O Clarim, da cidade de Echaporã-SP, que foi publicado na edição 291 do jornal, no dia 22 de junho de 2022.
Atualmente estou com um projeto financiado pelo CNPq intitulado “Enfrentamento de Violência de Gênero na Universidade: situações de assédio e parcerias necessárias para além das fronteiras” em conjunto com o LIEG. Segue abaixo o texto na íntegra:
Que universidade queremos?
O livro “Um teto todo seu” reúne palestras que a escritora Virginia Woolf ministrou em
universidades da Inglaterra. Nessas palestras ela discorre sobre a diferença de educação que ela e suas irmãs tiveram em relação a seus irmãos homens, que puderam frequentar a universidade e obterem educação formal. Já ela, mesmo sendo uma palestrante, não poderia sequer entrar na biblioteca da mesma universidade que a convidou sem um acompanhante do sexo masculino. E a sensação da escritora é que mesmo estando fisicamente presente naquele espaço, ela não era completamente bem-vinda.
Mas e a universidade hoje? Segundo o INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais, já em 2017 as mulheres predominavam em cursos superiores no Brasil. O
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) em 2019 também revelou que mulheres negras são maioria nas universidades públicas brasileiras, o que é consequência direta da política de cotas para negros, pardos e indígenas. Claramente é um avanço inegável desde os tempos da Virginia Woolf, mas essas mulheres que agora ocupam o espaço acadêmico se sentem bem-vindas?
As lutas das mulheres e minorias identitárias tem avançado. Os movimentos feministas tem abraçado lutas e resistências das distintas demandas sociais. Chegaram à periferia com pautas contra a violência, desigualdade salarial, assédio, liberdade reprodutiva e sexual, e não é diferente na universidade. E apesar das inúmeras resistências convivemos ainda com a permanência de um sistema formado por homens brancos, heterossexuais e elitizados que não acolhe essas transformações sociais dentro do ambiente acadêmico. O que antes era silenciado, abafado e mantido entre as paredes da instituição tem conseguido encontrar a atenção necessária dentro e fora da academia. Nos últimos anos temos visto notícias de alunas, alunos e alunes que não se calaram diante das violências sofridas dentro da universidade e passaram a se organizar e se manifestar contra o assédio no espaço acadêmico, enfrentando os comportamentos abusivos vivenciados e exigindo que a universidade se tornasse um espaço mais inclusivo, seguro e livre de assédio.
Para Sara Ahmed, escritora e intelectual australiana, o ato de denunciar expõe a vítima, que passa a ser estigmatizada, e precisa enfrentar a “mecânica institucional” que trabalha na contramão, dificultando o processo de reclamação pelos órgãos de gestão do sistema. Há resistência das universidades (além de outras questões como o corporativismo dos professores e morosidade das investigações) que dificultam o processo de reclamação e de acolhimento dessas vítimas. A presença de órgãos como “ouvidorias” e “corregedorias”, como parte das instituições acadêmicas que se colocam como um “ouvir especializado”, tem colaborado como um espaço de denunciar os comportamentos abusivos, como assédio moral, assédio sexual, racismos e LGBTQIA+fobia. No entanto as
ouvidorias acabam assumindo uma função de quantificação, gerando descrença coletiva por parte das reclamantes sobre a eficácia do sistema.
A partir de 2014, observamos diversos movimentos de resistência organizados pelos
estudantes, através de coletivos estudantis, sejam feministas, antirracistas e/ou anti
LGBTQIA+fobia, que fortalecem laços de proteção para as vítimas. Mas temos ainda um longo caminho a percorrer na divulgação de uma questão/situação que durante longo tempo viveu soterrada institucionalmente. Heloísa Buarque de Almeida, antropóloga e docente da USP, fala da existência de um currículo oculto na universidade: “Numa universidade aberta à entrada das mulheres (…) uma espécie de currículo oculto é posta em ação. Trata-se de um mecanismo de manutenção e reprodução de hierarquias, num processo de naturalização do impulso e da predação sexual como atitudes normais – mesmo entre homens dos cursos mais elitizados do país. Numa certa medida, se expressa assim como as desigualdades de gênero se reproduzem entre as elites universitárias.” Nesse cenário torna-se extremamente necessário a criação de políticas que buscam o fim da violência de gênero. Tanto no Brasil quanto na América Latina, algumas universidades tem se debruçado, cada uma a sua maneira, em investigar e propor alternativas, criando protocolos, comissões e tutoriais que visam a prevenção e enfrentamento do assédio e o acolhimento das vítimas, e precisamos com urgência nos dedicar a esse movimento de superação do assédio dentro do ambiente acadêmico, para que a universidade se
torne um lugar de convivência e permanência, e não apenas sobrevivência para os grupos
minoritários, que são as principais vítimas de assédio dentro do espaço acadêmico, seja esse assédio sexual, moral ou até mesmo psicológico.
Então, a questão que quero deixar para reflexão é: como sobreviver em um espaço acadêmico que não acolhe as vítimas? E essa questão da sobrevivência é algo muito discutido dentro do LIEG – UNESP e pela Sara Ahmed em toda sua obra, mas especialmente em seu último livro Complaint! (que seria Reclamação ou Queixa em tradução livre), no qual ela coloca o ato de reclamar como uma pedagogia feminista. Sara fala que devemos continuar batendo nas portas que não abrem, nas paredes que não quebram, mesmo que isso só cause barulho e descasque a tinta. Atrapalhar, reclamar e ser o que ela chama de “estraga prazeres” é o papel de toda feminista.