De acordo com Lidia Maria Vianna Possas, coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no campus Marília, as diferenças de gênero são construções culturais e não biológicas. Neste sentido, a escola, arraigada as tradições e modelos curriculares pré-fabricados, acaba estimulando e reforçando os papéis de gênero.
Para Lídia, embora o empoderamento das mulheres e o acesso à informação venham desnaturalizando tais papéis, a sociedade ainda enfrenta muitos desafios na busca de maior equidade de gênero.
Mobilizadores COEP – A partir de que idade, as crianças começam a experienciar as diferenças de gênero?
R.: Não se pode determinar de forma precisa. Isso varia muito dependendo da criança, da família, das experiências e do estímulo externo que a criança recebe. No entanto, no Projeto de Extensão*1 que o Laboratório Interdisciplinar de Estudos de Gênero (LIEG) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) realizou, com um universo de 12 escolas públicas na cidade de Matília , com crianças de Educação Infantil, percebeu-se que, no primeiro ciclo, com crianças de até 5, 6 anos, essa distinção nõa existenão há uma distinção: menino pega espelho rosa, pulseiras; menina pega bola; eles fazem escolhas e assumem funções sem a diferenciação de objetos que possam traduzir diferenças de gênero.
Isso começa a aparecer a partir do momento que a criança passa a ser estimulada a refletir sobre seu meio através de brincadeiras e atividades que as separam por gênero. Um exemplo são as histórias infantis. Nós trabalhamos, na pesquisa, com a história da Cinderela, em que a menina do borralho é vista como pobrezinha, coitadinha, submissa, frágil. As professoras não têm ideia de como uma história infantil, clássica, como essa, pode ser uma referência de papéis femininos. A moça boa submissa, que aceita ofensas, esta casa. As moças mais de temperamento mais forte são vistas como feias e punidas com o não casamento.
Cria-se, assim, a associação: moça boa casa; moça ruim não casa. Cria-se o estereótipo da solteirona, que, hoje em dia, está um pouco relativizado no nosso universo, pois não é tão mais exigido que a mulher se case. Mas ainda existe este questionamento das mulheres. Aquelas que assumem postura de liderança, o que chamamos de empoderamento, acabam afastadas do modelo imaginário, simbólico, que os homens (não todos) esperam de uma mulher. Ainda escutamos frases como “Não sei se a mulher ganhou com todas essas conquistas, pois acabamos fazendo tudo e ficando sozinhas”. Percebe-se um questionamento da própria mulher em relação ao valor dessas conquistas.
Mobilizadores COEP – A escola, então, estimula as diferenças de gênero?
R.: Sim. A escola identifica e reforça os papéis de gênero. Os professores ficam à mercê de modelos curriculares pré-fabricados, que reforçam os papéis normativos tradicionais do homem e da mulher na sociedade. Como? Nas atividades desenvolvidas, nas brincadeiras, no ato de contar histórias, na forma de conduzir suas aulas. Da mesma forma, as famílias também o fazem e acabam estranhando quando se quer trabalhar, na escola, as questões de gênero. Quando a família ou a escola reforça os papéis de gênero, são criadas expectativas que, muitas vezes, as crianças não têm. As crianças e jovens absorvem esses estereótipos e passam a reproduzi-los no dia a dia.
Acredito que muito da dubiedade sexual seja decorrente disso. Muitas vezes, um menino é sensível, emotivo, e, devido aos modelos que lhe são apresentados, fica envergonhado de ser assim. Tive alunos extremamente afetivos que não eram homossexuais, mas eram tidos pela classe como sendo. Viver com a diversidade é complicado, pois nossa cultura é muito ambivalente: isso é certo ou errado, isso é branco ou preto. Não percebemos as nuances. A realidade é muito mais múltipla do que as características que nos foram doadas e informadas através do conhecimento científico. É preciso saber viver com a pluralidade.
Mobilizadores COEP – Como é determinado o gênero de uma pessoa?
R.: Não é o fundamento biológico que determina o gênero. Você constrói identidades femininas e masculinas. Você não nasce mulher; você não nasce homem. Então, dependendo da formação que recebe das figuras maternas e paternas e da influência da sociedade, que ainda é muito sexista, ou seja, afirma os papéis biológicos de gênero, o jovem vai lidar melhor ou não com as diferenças de gênero. Hoje em dia, há uma tendência a diminuir a prevalência dessa formação sexista, com o movimento gay, manifestações culturais como o hip hop, o teatro etc. O acesso à informação vem desnaturalizando esses papéis de gênero.
Mobilizadores COEP – Até que ponto a violência doméstica é um reflexo das diferenças de gênero?
R.: Quando você exacerba o papel masculino, o homem não argumenta, ele bate, ele aumenta a voz, ele se altera. A mulher, historicamente, foi acostumada a aceitar, submissa, a violência, seja física ou psicológica, por parte do homem. As delegacias das mulheres foram criadas, em 1985, justamente como um espaço para deixar as mulheres mais à vontade para denunciar a violência doméstica. Com a Lei Maria da Penha*2, as denúncias aumentaram, mas ainda são poucas. Todos os dias temos estatísticas de violência doméstica.
Mobilizadores COEP – Neste sentido, como vai ser o trabalho do LIEG com as delegacias da mulher em Marília e Maringá?
R.: O trabalho vai envolver a Coordenadoria de Políticas Públicas para as Mulheres , a Delegacia da Mulher e o Comitê Assessor no município de Marília e de Maringá. Vamos implementar um trabalho de pesquisa para subsidiar as políticas públicas. A universidade vai sair do seu gueto acadêmico e partir para a ação, colaborando para um maior respeito entre os gêneros, a equidade de gênero.
Mobilizadores COEP – Que ações podem ser implementadas para a maior equidade de gênero?
R.: Levando o tema para dentro da escola, para que não se reforcem os estereótipos. Mudando, por exemplo, os papéis num teatrinho, em que meninos e meninas não atuem em funções predefinidas como de homens ou de mulheres; repensando as histórias infantis, seus finais, e estimulando o debate sobre o assunto. A Educação é um campo fértil e deve ser usada para a conscientização sobre as questões de gênero. É capaz de provocar mudanças significativas na maneira de ver e estar num mundo cada vez mais plural. Mas não é só um trabalho pedagógico. É um trabalho também de políticas públicas, que deve envolver toda a sociedade, a imprensa, sempre verbalizando que as práticas sexistas não são naturais e sim culturais.
Acabei de ver um filme de Walt Disney – Rapunzel –. em Digital 3D, que me impressionou. A principal protagonista não se apresenta dócil, e por deduções e raciocínios, consegue descobrir que é a filha do rei e que fora raptada. Ela enfrenta a bruxa…com argumentos e um comportamento de decisão… Vale a pena ver essa reconstrução do desenho na versão 2010
O nome Rapunzel mudou para Tangled. O quê? É! O nome do filme foi recentemente modifcado para Tangled [Embaraçado, Enrolado], por tirar o foco da personagem clássica e permitir que um herói masculino Flynn Rider (inspiração direta do inesquecível Errol Flynn) entrasse com mais força na história [ele já existia, devo dizer]. Desqualifiquou-se, assim, o filme como produto totalmente feminino para atrair outros públicos. Ou seja, a Disney quer fazer filmes para toda a família, assim como a Pixar, em vez de focar somente nas meninas. http://www.soshollywood.com.br/disney-cria-rapunzel-para-meninos/
Mobilizadores COEP – Hoje, com as mulheres mais atuantes no mercado de trabalho, houve mudanças?
R.: Sem dúvida. No entanto, embora as mulheres estejam emponderando, acabam, muitas vezes, assumindo comportamentos masculinos. O poder ainda traz características muito masculinas, o pragmatismo, a racionalidade associada a visão monolíotica e linaer dos problemas , calculismo rieza. As mulheres têm que empoderar, mas encontrar seu tom.
Mobilizadores COEP – De que forma o COEP pode contribuir para diminuir as diferenças de gênero nas comunidades onde atua?
R.: Se o COEP começar a colocar luz sobre essas questões, que estão periféricas nas comunidades, já é um grande passo. Não podemos entrar numa comunidade a criticando, pois podemos ferir valores, crenças. É preciso estimular o debate sobre o assunto e fazer com que a própria comunidade traga à tona seus preconceitos, seus estereótipos, para que ela mesma repense a forma como vive, como interage e encontre novos caminhos, em que a equidade de gênero esteja mais presente.
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*Durante 2010, ocorreu o módulo 1, intitulado “Gênero na Escola: aprimorando conceitos e discutindo práticas”. O projeto reuniu dados sobre a presença de práticas sexistas no ensino infantil e fundamental.
** A lei número 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de agosto de 2006. Dentre as várias mudanças promovidas pela lei está o aumento no rigor das punições das agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico ou familiar.
Entrevista do Grupo Gênero, Combate à Discriminação e Grupos Populacionais
Concedida à: Renata Olivieri
Editada por: Eliane Araujo
Data: 8/6/2011